quarta-feira, 24 de outubro de 2007

UMA CARICATURA

- Eu me pergunto se eles seriam capazes de entender os nossos termos. Digo, existe teoria eficaz sem prática? Se eles não viveram isso, se não viram isso, como poderão entender?
- O que te faz achar que eles não viveram isso? Pra mim eles não vivem NADA ALÉM disso.
- Talvez. Mas as coisas precisam ter algo diferente pra que você as veja, não? Senão vira tudo plano de fundo meio borrado, meio opaco. E algumas das grandes verdades ficam lá atrás enquanto muita bobagem com cara de nova brilha aqui na frente.
- Você precisa acalmar. Respire fundo de novo. Precisamos ter esperança neles, senão... Precisamos ter esperança neles, ora! O tempo está aí pra isso. De quantos socos você precisou pra ver?
- Às vezes eu fico pensando nisso... Será que eu sou tão sensível a ponto de a minha vida ter se tornado uma terapia de choque? Quero dizer uma ditadura... Talvez, no plano real, nada disso faça muito sentido pra mim. Mas depois de uns socos, afogamentos, tortura... Depois de tudo, isso tenha se tornado a mais pura verdade...
- Isso não cabe a mim... Suas verdades são suas. Mas você se considera mesmo tão sensível assim? Que terapia de choque teria sido maior que a sociedade de onde você fugiu? Maior que todos esses outdoors... Você precisa acalmar. O tempo está aí pra isso.
- O tempo... O tempo... Às vezes eu acho que preciso de mais ferramentas para senti-lo passar... Toda vez que eu cresço eu volto a ser pequeno.
- Nem sempre.
- Pra você é fácil falar. Tudo muda quando se tem filhos. Não sei quanto a você, mas pra mim o desespero vem de uma solidão tão grande que me faz querer adotar o mundo inteiro. Perceba aí o teor egoísta de tudo. EU quero salva-los.
- É bonito pensar assim, mas você sabe que eles estão destruindo a sua casa.
- Isso é verdade.
- E que talvez você queira “salvá-los” para que mudem, não por outra causa maior, mas porque eles estão DESTRUINDO a sua casa.
- Cada vez que entram tiram tudo do lugar, quebram louças, fazem barulho... às vezes acho até que estão...
- Que estão...
- Deus me perdoe...
- Que estão...
- Roubando! Essas coisinhas pequenas têm valor... Não falo em dinheiro não, mas um dia desses, eu fui visitar a casa de um deles e você não queira saber o que eu encontrei... Uma das louças, já meio gasta... Lá na cristaleira, que era como se fosse uma vitrina. Claro que eu reconheci assim que bati os olhos... Não queria ter de acreditar nisso, mas acho mesmo que estão roubando.
- Você sabe que eles estão. Você sabe que a casa deles virou vitrina. Você sabe que as coisas que mais brilham neles são roubadas ou copiadas. Eles são agora anúncios ambulantes de si mesmos, e o que é pior, dos outros.
- E como você me pede pra acalmar? Isso não pode continuar!
- Se não quiser que roubem da sua casa, feche sua casa. Se a invadirem, ponha um portão.
- E eu vou ficar presa aqui dentro...
- Você precisa se defender. Precisa estar segura pra se acalmar, é o primeiro passo.
- O que os olhos não vêem...
- Você continuará vendo, continuará sentindo, não se subestime. Mas estará segura.
- Quando eu ficar em casa terei crescido além deles e não poderei mais fazer nada, eu vou explodir.
- E se insistir em sair, corre o risco de se tornar um deles. Dentro da sua casa existem milhares de caminhos que você desconhece.
- Preciso acreditar no que eu não vejo.
- Precisa ver o que não espera. Vamos lá, eu te conheci mais criativa.
- Conheceu mesmo... E esta minha apatia é sintomática.
- Se eu estivesse um pouco mais pessimista veria até os primeiros traços...
- Não brinque com isso!
- Estou falando sério! Mas, acalme-se. Preste bem atenção. Antes de ser tomada por este espírito jovem metido a transgressor, de onde vinha sua orientação?
- Dos mais velhos?
- Dos mais crescidos, certo?
- Dos que eu considerava mais crescidos...
- Dos que você considerava mais crescidos. Certo. E depois, mesmo quando já tinha crescido um pouco, de onde vinha a sua orientação?
- Dos iguais a mim.
- Tem certeza?
- Claro. É a base da adolescência, não? “Não ouça seus pais, ouça seus amigos.”
- Mas você era igual aos seus amigos?
- Eu queria ser...
- Exatamente! Você queria ser! Eles estavam alguns passos à frente. Eram um pouco maiores. Ainda assim, por mais que você não pudesse ver você seguia orientações de quem considerava maior que você. Mas não fique chateada, é assim mesmo. É assim que nós funcionamos.
- Claro. Não posso seguir orientações de quem eu considero inferior... Mesmo que eu mude meu ponto de vista... Os pequenos se tornarão grandes e vice-versa... Você me entende!
- Entendo. Só que você está contradizendo suas atitudes.
- Não sei por que disse isso, mas não discordo. Eu estou mesmo ficando mais burra com o tempo. Quero dizer, quando você sabe o errado e faz o errado mesmo assim, você é burro em dobro, não é?
- Eu disse isso porque você diz que o seu ideal está acima disso tudo, mas você não consegue sair disso e se não tiver cuidado vai se tornar um deles. A apatia é o primeiro passo.
- Foi o que eu pensei... Cada vez que eu cresço me sinto mais impotente e quero dar passos pra trás, mas eu não posso sem me contradizer ou me tornar um ser ainda mais estúpido do que eu era antes e ainda mais estúpido do que todos eles.
- Uma caricatura...