domingo, 3 de fevereiro de 2008

A mulher Maria

Um cheiro forte de óleo diesel impregnava o ar. O balançar do carro era cada vez mais insuportável ao passar pela estrada maltratada. Fazia muito frio. O barulho do motor, do vento, do movimento e a luz do sol que nascia a despertaram. Não que estivesse dormindo. Seria impossível dormir naquelas condições, mas passara as ultimas duas horas e meia, entregue a um estado de letargia, enquanto os quilômetros passavam em forma de nuvens, fios, postes de energia e a inércia a sacudia com as freqüentes alterações de velocidade.
Nos bancos da frente iam calados, sua mãe e seu irmão mais velho. Completamente desconexos e alheios a toda a situação, até que ela resolve sentar-se e, ele, ao ver que ela acordou, liga o rádio. Música sem emoção é o que sente. Rompe-lhe no peito, silenciosamente, o princípio do desencanto. Ela não podia suspeitar que morresse, ali, dentro dela, naquele momento, a alma de todos os artistas. Aquele momento de imparcialidade sepultou, sob o asfalto frio do início do dia, o propósito de todas as musas.
Ele olha sua mãe. Ela não está ali. Tem os olhos, a mente e o coração focados na estrada. O único sentido daquilo tudo é que saíssem dali. A casa ficava para trás, a família ficava para trás, mas acompanhava-lhe os filhos, transbordando esperança e vontade pelo dia que acabara de nascer. Cruzaram o último quilômetro da última cidade antes da nova terra que vos acolheria agora. Teriam, outra vez, uma casa. Teriam, outra vez, uma vida cheia de novas possibilidades. O cheiro de óleo tocava-lha como cheiro de plástico. De brinquedo novo. Era um presente que ganhava e dava aos filhos. Ali, finalmente, teriam paz.
Na solidão do banco traseiro, Maria, abraçava uma pequena mala que tinha servido de travesseiro nas horas em que tentou dormir. Tinha cheiro de perfume de criança e ela podia, agora, identificar. Via-se refletida no vidro do carro e reconhecia seus próprios traços. Os cabelos estavam desarrumados, o rosto um pouco inchado, mas ainda era ela. Sentia aquele cheiro de criança saindo da mala e isso a incomodava. Evitava pensar que aquele era seu cheiro, mas como estava ali, sozinha no banco de trás, aquilo não podia ser, senão dela. O cheiro de criança vinha, agora, mais forte de seus cabelos, de suas orelhas, de seus pés, de suas mãos. Aquilo a irritava. Não podia ser dela. Ela não podia mais cheirar a criança. Estava indo embora e crianças não vão embora. Crianças ficam em casa esperando os adultos voltarem da rua com presentes e histórias. Maria ia embora, e não podia ir sem deixar sozinha, em casa, a criança.
A mulher Maria entra naquela pousada que cheira a coisa velha. Não se parecia com a imagem que tinha feito durante os longos quilômetros que percorreram. Não parecia com sua casa antiga. Não parecia com o que ela esperava encontrar. Maria encontrava-se, mais uma vez com o reflexo que a mostrava descabelada e desfigurada. Que não era capaz de refletir nada que fosse bonito. A partir dali, esta seria a imagem com a qual Maria teria de conviver. O cheiro de criança chegara ao ápice do incômodo e ela rompeu em direção ao quarto onde dormiriam aquela manhã. Trancou-se no banheiro, abriu o chuveiro, lavou-se, como se tentasse limpar de si tudo o que ficara da ex-casa, da ex-família, da ex-vida. A mulher Maria não cheira mais a criança. Dorme seu sono adulto até o fim da tarde, quando entra, com seus novos desconhecidos, no carro onde jamais entrara antes e exploram ainda mais alguns quilômetros inexplorados e chegam à cidade de ninguém.
O apartamento tem paredes brancas e os quartos não cheiram a nada. Maria senta-se no chão frio e desfaz a pequena mala-travesseiro. Tira de dentro dela alguns brinquedos, papel, lápis de cor e os esconde no canto da parede. Na ausência de um armário, um imaginário serve. A mãe sobe com as outras malas. Não é muita coisa. Maria deita-se no chão frio e adormece com o colorido desbotado dos pertences da criança morta que velará seu sono.