terça-feira, 25 de dezembro de 2007

SACO DE PÃO

Me desculpa por começar a escrever assim depois de tanto tempo sem nenhuma boa razão aparente. Às vezes a gente senta aqui (e estou falando de mim agora) e percebe que ainda é o mesmo quarto, que a luz continua ruim e que esse teclado ainda vai me matar de tendinite. Não vou começar com minha hipocondria agora. Foi só algo que eu percebi. Às vezes dá vontade de comentar, sabe? Como daquela vez que você viu uma loja com o meu nome. Eu passava por ali tantas vezes na semana e nunca tinha reparado e agora já faz mais de um ano e eu reparo todo dia. Não que isso seja algo muito grandioso. É só uma espécie de vínculo idiota. Só pra você ter um pensamento quando não vier nenhum.
Você deve estar ainda se perguntando por que eu resolvi escrever. Tá. A verdade é que eu não estou escrevendo pra você. Não sei se você já fez isso, mas é uma coisa que eu faço às vezes (mas também sempre acabo dando um jeito de a pessoa descobrir a verdade no final). Isso de escrever pra tantas outras pessoas e mandar a carta assim “olha o que eu te escrevi”. Mas se um dia isto chegar até você, você saberá que é mentira, porque eu não mando cartas. Mas você também julga saber demais sobre mim. Seria precipitado pensar assim, meu bem. Eu escrevo dezenas de cartas por ano e se eu não mando, tenho meus motivos. Muitas vezes esse é um dos motivos. Pra quem mesmo eu estou escrevendo? O seu nome tem de vir bem no começo, senão tudo se perde e se confunde. Mas não há mal nenhum nisso. Por fazer assim eu sempre passo um tempão sem dar notícia e aí você para de lembrar de mim. Eu dou férias às suas lembranças. Só que agora é justamente pelo contrário que eu estou escrevendo. Porque esses dias eu não vi loja nenhuma com o seu nome, mas achei que seria importante comentar que ainda me lembro dele.
Hoje fui arrumar uma gaveta e lá estava, feita à mão, uma das cartas que eu tinha escrito, em parte, para você. E eu reli e entendi perfeitamente o que queria dizer. Eu achei que não entenderia mais. Nossa comunicação era estranha aquela época, lembra? Éramos cheios de peculiaridades. Mas, pasme, eu entendi perfeitamente. Começava assim, eu contando, como que num diário, sobre aquele texto que você tinha me mostrado. Mesmo que em nenhum momento eu fale isso claramente, eu me lembro. Eu vou explicando que quando eu comecei a ler eu não consegui me concentrar no que você queria dizer com ele (desculpa). No meio da leitura minha linha de raciocínio foi cortada pela constatação de que você gosta de escrever e isso era uma coisa que eu não sabia. Você já tinha me dito, mas eu não tinha levado muito a sério. Acontece que seu texto me fez perceber que você tem grande talento pra coisa e aquilo me fez te admirar, sabia? Eu vou falando isso na carta. É o sentido oculto que você não entenderia se eu tivesse te mandado e por isso eu não mandei e agora esta é uma memória a mais que eu tenho de você e que você não tem de mim.
Engraçado que no final tem um pedacinho de texto. Uma coisinha pequena e boba que eu te mostrei, mas fiz o oposto: disse que não era pra você. Disse que até poderia ser mas não era, não daquela vez. Não sei se você entendeu. É que eu não costumo mesmo deixar essas coisas bem nítidas “isso é pra você, isso é pra fulano”. Perde um pouco a graça, a magia. E, conhecendo você como eu conheço, você não sossegaria até entender o que me levou a escrever aquilo. Só a longínqua possibilidade de ter sido pra você já te fez me perguntar por dias. Depois não reclame por eu não mandar cartas e não venha me dizer que aquilo era você tentando me entender. Se tem uma coisa que você não fez com empenho foi tentar me entender.
Eu não. Te dei papel e caneta pra você desenhar. Sabia que você descobre coisas incríveis a respeito de uma pessoa ao observá-la desenhando? Eu também fui lá naquele lugar onde eu não conhecia ninguém e fiquei olhando como você se comportava com eles, velhos conhecidos. E até que eu me identifiquei bastante. Pena (ou sorte) que esse tipo de identificação não sustenta nada. Talvez você não saiba de metade das coisas, mas você nunca me levou com aquela história de “eu aceito você assim como você é”. Ora, isso exclui todas as minhas possibilidades de ser alguma coisa. Por isso eu te provocava. Queria te ver com raiva. Queria te ver não aceitar alguma coisa. Você é uma criatura bizarra, meu bem. Isso é fato comprovado! Quando não engole tudo, o bem e o mal de uma só vez, abre os braços e não segura nada. Se eu já soubesse não teria insistido uma só vez e teríamos passado um pelo outro nesta vida como desconhecidos jamais revelados. Sabe o que eu te diria depois de tudo? Pare com isso, ora! Tente entender um pouquinho da complexidade das coisas e das pessoas, isso te ensina bastante. Isso te faz valorizar coisas concretas e distinguir direitinho o que vai te fazer bem e o que não vai. Não aceite que te maltratem, grite mais alto que eles de vez em quando e não os abandone quando encontrar algo que não puder engolir. Às vezes as pessoas com quem você cria vínculos, por mais estúpidos que sejam, precisam de você.
Mas não me leve tão a serio. Esta carta não é pra você. Até que poderia ser, mas não é. Não desta vez. Eu não tenho mais nada a te dizer, lembra? Ok. Desculpa por ter levado o assunto a um nível dramático demais, mas eu precisava falar.
Sabe? Teve outra coisa que me fez lembrar você esses dias. Eu passei na frente de um bar decadente. Eu no carro e era domingo. Não lembro bem pra onde estava indo, muito menos o que foi que me fez lembrar, era uma placa, lembro disso. Mas lembro mesmo que dei uma gargalhada e foi engraçado. Faz sentido eu comentar se eu não lembro o que era? Tá. Não comento mais. Só queria terminar a carta com uma gargalhada, ao invés de um conselho. Conselhos não valem nada. Gargalhadas valem muito.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Lelé

Eu tinha me decidido a não tirar o dia para fazer nada hoje. Eu queria mesmo fazer alguma coisa de útil pra minha vida. Eis que eu saio e o sol vai me esquentando, e é de manhã e eu tinha desistido do café e eu queria mesmo era que alguma coisa fosse resolvida. Eu entrei lá naquele prédio, desci no terceiro andar e peguei o exame dela. Eu não ia abrir, mas eu precisava ter algum argumento, pra ela ou pra mim. Pra ela voltar ou pra eu deixar de ficar querendo que ela volte que é melhor que ela fique mesmo por lá. Eu acabo lendo o resultado e não é um bom resultado. Poderia ser pior, mas as coisas ruins às vezes são contadas com palavras estranhas que não parecem ruins à primeira vista. Palavras que não são de ferir, mas acabam ferindo, e essa foi a primeira decepção do dia. Porque isso jamais me servirá de argumento pra achar que ela deve mesmo ficar por lá um bom tempo. E eu jamais poderia falar pra ela e usar isso como forma de convencê-la a voltar. Porque dentre outras coisas isso seria muito feio e essa semana eu não quero fazer nada muito feio.
Essa semana eu tenho achado que o mundo inteiro é um lugar muito feio pra se viver, e o pensamento vem de quinta passada, que eu não me importaria em abrir mão de nada nessa vida, eu preferia mais que tudo isso ser uma pedra subaquática, ou ser uma gota de água no meio do mar porque assim, apesar de tudo eu seria parte de algo bonito e ela ficaria feliz a me ver de manhã. Porque minha vontade é grande e me dá vontade de chorar só de pensar nela, e ela é maior até do que a minha força, ou da força que eu acho que eu tenho pra mudar as coisas. E as coisas não querem ser mudadas e eu não posso forçar nada a ninguém nem ninguém a nada. Talvez eu só tenha que me aquietar e ocupar a cabeça com outras coisas. Mas eu não consigo. Eu não consigo procurar amenidades pra guardar aqui, porque nada deveria, pra mim, ser mais ameno do que eu mesma. Porque eu paro e fico pensando que uma vez meu corpo expulsou um piercing que eu fiz porque o seu organismo é feito para expulsar corpos intrusos. Mas se meu organismo começa a expulsar a minha alma pra onde eu vou? É o que eu tenho sentido. E é tão bonito sair dizendo por aí que não encontra lugar no mundo que talvez esse sentimento seja mesmo comum a toda essa gente, mas tem me sido cada vez mais nítido e exagerado a cada dia.
Hoje o meu avô me deu alguns presentes e entre eles estavam três macaquinhos pequenos. Um, tapa os olhos, o outro, tapa os ouvidos, e o outro, tapa a boca. É um símbolo da filosofia budista e significa “nada vejo, nada ouço e nada falo”.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

UMA CARICATURA

- Eu me pergunto se eles seriam capazes de entender os nossos termos. Digo, existe teoria eficaz sem prática? Se eles não viveram isso, se não viram isso, como poderão entender?
- O que te faz achar que eles não viveram isso? Pra mim eles não vivem NADA ALÉM disso.
- Talvez. Mas as coisas precisam ter algo diferente pra que você as veja, não? Senão vira tudo plano de fundo meio borrado, meio opaco. E algumas das grandes verdades ficam lá atrás enquanto muita bobagem com cara de nova brilha aqui na frente.
- Você precisa acalmar. Respire fundo de novo. Precisamos ter esperança neles, senão... Precisamos ter esperança neles, ora! O tempo está aí pra isso. De quantos socos você precisou pra ver?
- Às vezes eu fico pensando nisso... Será que eu sou tão sensível a ponto de a minha vida ter se tornado uma terapia de choque? Quero dizer uma ditadura... Talvez, no plano real, nada disso faça muito sentido pra mim. Mas depois de uns socos, afogamentos, tortura... Depois de tudo, isso tenha se tornado a mais pura verdade...
- Isso não cabe a mim... Suas verdades são suas. Mas você se considera mesmo tão sensível assim? Que terapia de choque teria sido maior que a sociedade de onde você fugiu? Maior que todos esses outdoors... Você precisa acalmar. O tempo está aí pra isso.
- O tempo... O tempo... Às vezes eu acho que preciso de mais ferramentas para senti-lo passar... Toda vez que eu cresço eu volto a ser pequeno.
- Nem sempre.
- Pra você é fácil falar. Tudo muda quando se tem filhos. Não sei quanto a você, mas pra mim o desespero vem de uma solidão tão grande que me faz querer adotar o mundo inteiro. Perceba aí o teor egoísta de tudo. EU quero salva-los.
- É bonito pensar assim, mas você sabe que eles estão destruindo a sua casa.
- Isso é verdade.
- E que talvez você queira “salvá-los” para que mudem, não por outra causa maior, mas porque eles estão DESTRUINDO a sua casa.
- Cada vez que entram tiram tudo do lugar, quebram louças, fazem barulho... às vezes acho até que estão...
- Que estão...
- Deus me perdoe...
- Que estão...
- Roubando! Essas coisinhas pequenas têm valor... Não falo em dinheiro não, mas um dia desses, eu fui visitar a casa de um deles e você não queira saber o que eu encontrei... Uma das louças, já meio gasta... Lá na cristaleira, que era como se fosse uma vitrina. Claro que eu reconheci assim que bati os olhos... Não queria ter de acreditar nisso, mas acho mesmo que estão roubando.
- Você sabe que eles estão. Você sabe que a casa deles virou vitrina. Você sabe que as coisas que mais brilham neles são roubadas ou copiadas. Eles são agora anúncios ambulantes de si mesmos, e o que é pior, dos outros.
- E como você me pede pra acalmar? Isso não pode continuar!
- Se não quiser que roubem da sua casa, feche sua casa. Se a invadirem, ponha um portão.
- E eu vou ficar presa aqui dentro...
- Você precisa se defender. Precisa estar segura pra se acalmar, é o primeiro passo.
- O que os olhos não vêem...
- Você continuará vendo, continuará sentindo, não se subestime. Mas estará segura.
- Quando eu ficar em casa terei crescido além deles e não poderei mais fazer nada, eu vou explodir.
- E se insistir em sair, corre o risco de se tornar um deles. Dentro da sua casa existem milhares de caminhos que você desconhece.
- Preciso acreditar no que eu não vejo.
- Precisa ver o que não espera. Vamos lá, eu te conheci mais criativa.
- Conheceu mesmo... E esta minha apatia é sintomática.
- Se eu estivesse um pouco mais pessimista veria até os primeiros traços...
- Não brinque com isso!
- Estou falando sério! Mas, acalme-se. Preste bem atenção. Antes de ser tomada por este espírito jovem metido a transgressor, de onde vinha sua orientação?
- Dos mais velhos?
- Dos mais crescidos, certo?
- Dos que eu considerava mais crescidos...
- Dos que você considerava mais crescidos. Certo. E depois, mesmo quando já tinha crescido um pouco, de onde vinha a sua orientação?
- Dos iguais a mim.
- Tem certeza?
- Claro. É a base da adolescência, não? “Não ouça seus pais, ouça seus amigos.”
- Mas você era igual aos seus amigos?
- Eu queria ser...
- Exatamente! Você queria ser! Eles estavam alguns passos à frente. Eram um pouco maiores. Ainda assim, por mais que você não pudesse ver você seguia orientações de quem considerava maior que você. Mas não fique chateada, é assim mesmo. É assim que nós funcionamos.
- Claro. Não posso seguir orientações de quem eu considero inferior... Mesmo que eu mude meu ponto de vista... Os pequenos se tornarão grandes e vice-versa... Você me entende!
- Entendo. Só que você está contradizendo suas atitudes.
- Não sei por que disse isso, mas não discordo. Eu estou mesmo ficando mais burra com o tempo. Quero dizer, quando você sabe o errado e faz o errado mesmo assim, você é burro em dobro, não é?
- Eu disse isso porque você diz que o seu ideal está acima disso tudo, mas você não consegue sair disso e se não tiver cuidado vai se tornar um deles. A apatia é o primeiro passo.
- Foi o que eu pensei... Cada vez que eu cresço me sinto mais impotente e quero dar passos pra trás, mas eu não posso sem me contradizer ou me tornar um ser ainda mais estúpido do que eu era antes e ainda mais estúpido do que todos eles.
- Uma caricatura...





quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O Mar.

Pulou, então de pés juntos. Poderia ter segurado os joelhos, mas preferiu erguer os braços com se quisesse prolongar-se por toda a extensão desde a rocha até a água. Voou por alguns segundos até tocá-la. Primeiro com os pés. Depois com tudo o que de seu corpo não havia ainda se molhado. Era fundo. Enormes bolhas projetavam-se lentamente para fora de sua boca e explodiam à superfície. Bradou, ainda que sem voz, alguma frase inaudível e indecifrável.
Com o rosto maravilhado diante do espetáculo que presenciava ao seu redor podia então perceber toda aquela vida subaquática que pulsava, dançava e acendia em fortes tons reluzentes. Todas as cores fundiam-se às suas pupilas. Sorriu. Escapou-lhe, então, mais três grandes bolhas que subiam defronte seus olhos – Vem dos meus pulmões e agora pertence à água – concluiu. Lembrou-se de que não fazia distinções entre ar e água – é a mesma coisa em diferentes estados. Lembrou-se ainda de que um terço de seu corpo era água. Mas não conseguia mais entender assim. Agora dois terços de água transformaram-se em corpo. Não havia mais diferentes estados depois que a última bolha de ar saiu de sua boca. Sentiu, mais uma vez, o próprio corpo em toda a sua extensão: cabelos, orelhas, dentes, areia, sanguessugas, bolhas e algumas plantas aquáticas.
Percebeu, então, um fio de vermelho reluzente que saía de suas costelas desenhando longas espirais que dançavam ao passo que diluíam em água, ganhando um tom róseo à medida que se distanciavam de sua origem. Tocou o furo que acabara de se abrir em seu tronco enquanto voltava, levemente, à superfície.
Com os olhos fixos nas nuvens ao longe, sorriu radiante. Um sorriso lento e involuntário que se abria largamente com o ritmo do vento frio que lhe tocava, agora, desde a cintura, até o topo da cabeça. Retirou a mão do ferimento e observou cuidadosamente as pontas dos dedos vermelhas, assim como seu braço que se avermelhava com as gotas de sangue-água que escorriam. Pintou os próprios lábios com as os dedos trêmulos e gelados de sabor metálico e vermelho. Sabor vermelho-metálico – pensou.
Entregue a toda a vida que percebia, os cabelos derramavam-se sobre a testa, orelhas, rosto, e costas. Baixou ainda o olhar para ver as pupilas que se dirigiam às suas e pronunciou, com toda a verdade que guardava em si: – é tudo lindo.
Voltou então ao mundo submerso ao qual pertencia agora. Era seu o mundo inteiro e era agora todo o mar.

domingo, 24 de junho de 2007

PARANÓIA DE BÚFALO

Eu paro e fico pensando que talvez alguns dos próximos passos sejam prejudicados por coisas que eu ainda não fiz. Só paranóia mesmo. Eu não acredito inteiramente nisso. De uma forma ou de outra eu fico pensando que talvez eu não consiga ir muito longe antes de voltar e fazer o que parte de mim acha que eu deveria ter feito. Ignorar a atitude madura de ficar em casa e ficar calada e agir sobriamente, nem que isso signifique não estar propriamente sóbria – dói menos, né? Dizem... – ignorar a atitude superior – nessas horas é preciso ter classe, não se alterar – e fazer logo tudo errado e impulsivamente, sabe-se lá por quê. Só pra acalmar a paranóia, destruir a possibilidade e transformá-la em fato. O problema nem são os fatos consumados. Talvez nem a frustração pelos não consumados, porque, como dizem por aí, tudo passa, até a frustração. Principalmente quando vem com uma pontada de raiva. Digo raiva mesmo. Raiva crua, raiva nua, raiva pura. Provoque um búfalo e espere a reação: ele vai se defender e atacar porque vai sentir raiva. A frustração passa mais fácil quando vem com essa raiva pura de búfalo. E nessas horas eu lamento não ser búfalo. Tem tantas coisas... Tantas obrigações sociais, morais, éticas, espirituais. Duvido que um búfalo pague por isso. Ele passa por cima do seu carro, quebra tudo, desconta tudinho mesmo, não guarda mágoa, de imediato ele acaba com o peso e quem sabe até com a raiva e nem por isso podemos julgá-lo mal. Mas usamos essa máscara burra de humano para fingirmos que não somos animais e que não sentimos raiva de búfalo porque temos classe. F***-se a classe, o búfalo é mais feliz. Qualidade de vida, entende? Enfim, como eu ia dizendo, o problema não é o que houve ou o que não houve, até porque depois que você sabe que passou mesmo (e de fato passou) pouco importa o que aconteceu, veste-se logo de uma vida nova e fica-se sorrindo feito bobo, contemplando as novas possibilidades. O problema mesmo são as fagulhas. O restinho de existência que não vai embora. Tem até umas teorias científicas que dizem que um pedacinho de energia sai do seu corpo quando você morre e continua por aí. Fagulhas. São uma m*** – perdoe-me o palavrão – todas essas fagulhas que ficam, tipo o nome da rua que é igual ao do irmão de uma menina que estudou com você há onze, doze anos, e que você poderia muito bem ter esquecido, mas não esqueceu, o número do telefone que é igual à placa do carro na sua frente por uma hora e meia no engarrafamento, a música que toca numa propaganda estúpida que você teve o azar de chegar bem na hora que estava passando na casa de não-sei-quem-que-quase-não-tem-influência-na-sua-vida, mas a propaganda tinha que ter aquela música imbecil pra acabar com o seu dia, porque, como sabemos, fagulhas acendem com o mínimo ventinho e o mínimo carbono. E o pior, depois da raiva de búfalo e das obrigações sociais, morais, éticas e espirituais que te impediram de gritar, passar por cima do carro e quebrar tudinho, as fagulhas acendem sem luz, sem calor, vão só consumindo a imagem bonita de vida nova e desmanchando seu sorriso bobo de quem contempla as novas possibilidades, tipo fogo da gasolina de carro de corrida. Não fossem as malditas fagulhas, tudo estaria lindo. As fagulhas que trazem a paranóia de que pra destruí-las eu tenho que voltar e tratar a minha raiva instintivamente como se eu fosse búfalo – e quem sabe eu até seja – e passar por cima do carro e gritar e quebrar tudinho. As fagulhas, literalmente, filhas-da-p*** é que me fazem pensar que talvez eu empaque, e, por não ser búfalo, vire asno, e não dê um passo à frente e fique repetindo as mesmas possibilidades a partir das mesmas coisas estúpidas e não faça mais nada se eu não voltar fizer algo. De qualquer forma, eu não acredito inteiramente nisso. É só paranóia de búfalo.

domingo, 27 de maio de 2007

O Conto.

*O texto a seguir foi escrito em janeiro de 2007.




Não existe felicidade roubada. A verdade é que está tudo dentro da sua cabeça, tanto quanto uma pílula de açúcar o faria sentir coisas inimagináveis. Tanto quanto você mataria e morreria em nome de Deus. Tanto quanto acreditaria a vida inteira que o céu é azul, ainda que fosse incapaz de distinguir cores. Fatalmente sugestionado a acreditar no que - do fundo de sua essência - quiser. No que for mais cômodo, mais poético, mais polêmico, mais bonito. Como se o mundo inteiro fosse mero cenário de um conto que você criou. As pessoas são meros personagens, que, para sua tristeza, você não pode controlar. Sequer prever. Andam por aí se preocupando em como interferir. Em como mudar o rumo das coisas. Especulando sua vida, até que as cortinas se abram e chegue a hora de participarem.
Mas nada disso é verdade. A realidade é que os acontecimentos fogem ao controle das suas idéias. As atitudes alheias são alheias à sua vontade e, raramente levam em consideração a sua existência. As pessoas andam por aí chutando pedras, pisando em folhas secas, movendo poeira e partículas e, às vezes, acabam atropelando você. Sem o intuito, por tantas vezes, sequer percebem. Quantos jamais calculam... Pensar é tarefa árdua e leva, constantemente, a enganos. Enganos que riem do seu conto particular. Riem da sua dor, da sua poesia, da sua beleza, do significado da sua vida inteira. O fazem parecer poeira, partículas.
Tão pequeno é você diante disso. Do curso natural das coisas. Do tempo dos outros, que por tantas vezes atropelam o seu. Não, não se sinta tão importante. Não foi premeditado. Não foi calculado. Simplesmente aconteceu. Ainda que doa. Ainda que tenha derrubado suas paredes. Ainda que tenha lhe levado embora a fé na vida. Não foi calculado. Nada tem a ver com sua vontade. Os casos de crueldade não se encaixam aqui. Não no destino descontrolado e apressado. Mesmo que tenham pensado em você, se preocupado, tudo foi feito da maneira mais decente possível. Ainda que não pareça. Ainda que afundados e rodeados por toda essa lama, nós, personagens do seu conto, tentamos fazer as coisas com o máximo de decência, para o caso de perdermos o sono alguma noite, algum dia. Precavidos contra a angústia, que em meio à lama onde estamos, acaba sujando seus pés, suas paredes, seu livro, sua pintura, e, raramente, nos invade. Essa angústia que o consome agora, nós não sentimos aqui. Fomos os mais decentes que pudemos e se você está fodido... É uma pena, pois não deveria ter escrito o conto assim.
Mas isso não é um conto. É um conto o que você sentirá com a lisérgica pílula de açúcar. É um conto a cor que usará pra pintar o seu céu. É um conto o nome que você dará à sua ânsia de matar e morrer. É um conto o inatingível centro produtor de idéias e conceitos dentro da sua cabeça. O que o anestesia e o fere diariamente. O freio e o grito instigante. Esse é o conto. Descubra como escrevê-lo. Aperte bem os olhos para fugir de você. Da sua maneira de ver as coisas. Cante destoando. Cante fora do tempo. Grite de madrugada. Simplesmente para ver como seria se tudo fosse diferente.
Mas, ainda assim, eu não acredito que essa fórmula funcione sempre. Talvez essa não seja a fórmula. Talvez essa não seja bem a maneira correta, enfim. Não posso dizê-lo. Não teria como escrever aqui. Mas descubra qual conto você pode escrever. Que parte da vida pode controlar. E, antes que todas as paredes desmoronem, antes que seu último fio de cabelo afunde na lama, antes que não possa mais ouvir a música de fundo, porque tem um choro gritando mais alto dentro de você. Antes que perca a vontade. Antes que deixe de se importar, escreva.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Trecho de uma carta pro Zé.

" (...)À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Andei escrevendo bastante esses dias. Algumas cartas pra todos e pra ninguém que talvez ninguém leia, coisas bem adolescentes mesmo. Andei conhecendo coisas novas pra mim e antigas, como os Buzzcocks (banda de quem a Enid, do Ghost World, é fã), Iggy Pop, Velvet Underground, The Exploding Hearts, Big Star e por aí vai. Influenciadíssima pelo novo baixista da Café o cara mais nerd por rock’n’roll que eu já conheci na vida e que nem por isso se torna um chato-metido-a-cult. Eu tento, tento, tento, mas não consigo não concordar com a teoria providencialista do João Luis que diz que a Café Colômbia é uma banda de muita sorte. Toda vez que uma coisa muito ruim acontece, acontece logo depois alguma coisa muito boa. Não é nossa culpa!
Criei um blog novo (zineophobia.blogspot.com), o nome é inspirado naquela loja legal de CDs, revistas, discos, vídeos e afins que a Enid e a Rebecca freqüentam nos quadrinhos do Ghost World. Eu tenho publicado umas bobagens meio dramáticas, meio existencialistas (meu Deus, como eu não queria que isso fosse tão a minha cara), mas estou pensando seriamente em pirar de vez (para os meus padrões antigos) e assumir uma identidade única ali que não tem nada de dramática nem existencialista e que simplesmente absorve as coisas legais desse so-called-rock’n’roll-world – e por rock’n’roll world entenda não uma cena ou glamour ou algo parecido, mas simplesmente alguém viver intensamente referencias roqueiras como ouvir muita música, ser meio fora do “sistema”, etc etc etc – uma coisa bem adolescente mesmo, que quanto mais o tempo passa, mais eu descubro que ser adulto é uma experiência dramática e existencialista chatíssima e que eu quero chegar aos 52 anos igualzinha à Kim Gordon (ou à imagem que eu tenho dela), e viver sob uma atmosfera tão leve quanto à do rock adolescente sem grandes questões filosóficas, dramáticas e existenciais. E eu quero também, com tudo isso aliviar a minha alma e, de certa forma a de quem se identificar e for capaz de captar a minha arte, ou algo que o valha. Afinal de contas foi por isso que não descansamos até arrumarmos um violão e aprendermos a tocar nos primórdios de tudo, né? Será que eu consigo? É um plano meu."

sábado, 19 de maio de 2007

Neste exato momento.

Às vezes eu acho que vou pirar por não fazer nada. Toda essa existência sendo disperdiçada... É um pensamento que eu tenho constantemente e que provavelmente eu roubei de algum lugar: existe um sol que pode ser agradável com ondas quebrando (sim, ondas quebrando... e eu nem gosto de praia tanto assim..) existem árvores e sombras dessas arvores projetadas sobre gramados e existem formigas nos gramados e formigas de cores estranhas. Existem novas pedrinhas em lugares diferentes esperando ansiosamente que alguém chegue e filosofe “de onde vêm as pedrinhas?” com a mesma inocência com a qual uma criança filosofa “de onde vêm os bebês?”. Existem cheiros nas flores... Dá pra imaginar isso?! Existem cheiros nas flores antes mesmo de existirem perfumes! Existem sombras se mexendo e fazendo uma dança engraçada, e, neste exato momento tem uma libélula posada na ponta de um galho de uma árvore e um passarinho posado na ponta de um outro galho de uma outra árvore. Neste exato momento, o sol começa a se por e pinta o céu e as nuvens de cores novas que fazem novos desenhos a cada sopro do vento. Cada dia é um novo desenho com novas cores a cada sopro. Neste exato momento a água do mar ou de um rio está ficando mais quente e começa a refletir com mais precisão e mais suavidade tudo o que está acima dela. Neste exato momento o vento está batendo nas folhas de alguma planta e os passarinhos começam a voltar pras suas casas (como diria minha mãe), e se você ficar olhando pro céu, verá bandos deles fazendo outros desenhos bonitos e que mudam a cada variação de velocidade entre eles. Também ouvirá o barulho que eles farão ao se despedirem disso que existe fora de suas casas. Neste exato momento eu até tenho a minha mãe e ela não está aqui pra me mostrar o céu e os bandos de passarinhos que voltam pra casa. Neste exato momento em que as pedrinhas já quase desistiram frustradas de esperar seu filósofo, que as ondas quebram com menos força e o mar vai, como se também estivesse voltando pra casa, adentrando cada vez mais. Que o sol vai brilhando com menos força a despeito da água dos rios e mares e variações, que vai ficando mais quente. Neste exato momento eu estou aqui, apodrecendo minha juventude.

A filosofia de ônibus voltou.

A filosofia de ônibus voltou. Entro. Sento na cadeira da frente. Pego o melhor lugar. Atrás de mim um velho com chapéu do interior e barba de três dias. Meu egoísmo me conforta: “no meu lugar ele não teria pensamentos tão furtivos.” Egoísmo. Preconceito. Julgamento, enfim.
Sento-me na minha poltrona com vista para as avenidas e almas penitentes sob o sol do meio-dia na cidade da luz. Penso. Quantas poltronas no mundo para tão poucas idéias. Quantas cabeças vazias em poltronas realmente confortáveis... E mais: reclináveis. Quando eu tiver uma casa, terei uma poltrona vermelha para filosofia. Da mais barata a mais rebuscada. Sim, móveis vermelhos para contrastar com a minha apatia.
Os pensamentos acabam dentro de uma caixa de ferro furiosamente surrada pelos buracos no asfalto. Calor, barulho, tortura. O alarme da marcha ré é ativado. Sabe Deus por quê. Não pára. Os pensamentos são cortados. Dilacerados. E eu assisto a tudo da minha poltrona com vista pro chão. Para os anúncios nas paredes. Mendigos e vagabundos de suor reluzente. Da minha poltrona nada fede. Nunca mais eu levanto daqui.